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O cidadão

Como não tinha dinheiro para pagar a conta do restaurante, ele decidiu sair sem pagar. Logo que chegou à rua, começou a pensar que precisava, sim, resolver sua situação financeira.


Para conseguir dinheiro, sou capaz até de trabalhar, pensava Juca Abelardo. Mas ele também não desejava simplesmente ter um emprego comum, como passar horas em uma aborrecedora função administrativa, ou atendendo clientes chatos em uma repartição qualquer. Ademais, Juca Abelardo estava acostumado a viver descompromissadamente, sem hora para acordar, nem para dormir. E, entre essas duas coisas, sem obrigação alguma, além de levar ar aos pulmões e expirar gás carbônico.


Largar a vida boa, a qual ele se acostumara, não seria tarefa fácil, mas precisava tomar uma atitude, porque também lhe incomodava muito ir a casas de parentes e amigos para fazer suas refeições, sempre chegando de surpresa, embora sempre, também, sendo muito bem recebido. Quando enjoava-se de seus enfadonhos anfitriões, decidia-se a frequentar restaurantes, mas nunca pagando ou, muito menos, dando gorjeta a qualquer garçom. Gente boa, essa gente que serve mesas. Bem que eu deveria pagar alguma coisa a eles, de vez em quando, pensava Juca Abelardo, sempre que ia às tais casas que servem refeições prontas.


Quando chegou em sua casa, Juca Abelardo lembrou-se de outra coisa que o irritava. Todo mês, o atraso nas prestações de seu imóvel aumentava. Mais tarde naquele dia, em uma conversa que teve por telefone com sua irmã, Juca Abelardo desabafou sobre isso:


-Pois é, mana, essa gente vive torrando a minha paciência, viu. Todo mês me mandam uma conta para pagar. Ora, se eu não paguei as primeiras, o que os faz pensar que vou pagar essas? Eles não se tocam mesmo.


Concordo, disse a irmã, do outro lado da linha. Sabe, mano, insistir assim é horrível, eles acabam se tornando desagradáveis.


-Muito, chegam a ser piores do que as pessoas do telemarketing.


Pois é, meu querido irmão. Mas vamos ter fé que um dia eles param de encher, disse ela.


No dia seguinte, quando Juca Abelardo passava por sua rua, percebeu um anúncio, de um concurso público. Ele estava na primeira página de um jornal especializado em concursos, que estava pendurado na parte da frente de uma banca de revistas, que pertencia a um conhecido seu. Como nada tinha a fazer, Juca Abelardo decidiu lê-lo. O dono da banca chegou até ele e disse:


Sabe, moço, esse negócio de ser funcionário público é bom demais. Tu não tens de fazer nada de mais, é um serviço moleza.


-Moleza? Isso é bom. Esse é meu nível de dificuldade favorito. Por que ficar se cansando na hora do trabalho, não é mesmo?


Tens razão, seu Juca.


-Imagina só, quem gasta as energias trabalhando não tem fôlego para se divertir depois. Trabalho tem de ser assim, levinho, levinho. Olha o teu exemplo. A que horas tu te acordas?


Cinco da manhã.


-Estás vendo? Para que ser um fanático como tu? Se eu acordo a essa hora, depois não tenho disposição para ir às festas, que sempre acontecem tarde da noite.


O dono da banca ficou pensando no que Juca Abelardo lhe dissera. Sentia-se mal por passar uma má impressão a ele. Como não sabia o que deveria dizer, ficou em silêncio. Quem disse algo foi Juca Abelardo:


-Bom, eu já vou indo, até mais, seu Borges.


Percebendo que Juca Abelardo levava consigo o jornal, Borges perguntou, com toda a educação do mundo, se ele não iria pagar.


-Pagar por quê, seu Borges? Eu só vou ler o jornal e depois te devolvo, ora essa.


Ah, sim, sim. Desculpa, seu Juca.


E Borges voltou ao caixa de sua banca, preocupado se sua atitude não teria ofendido a Juca Abelardo.


Analisando as informações sobre o concurso, Juca Abelardo tomou a decisão de se inscrever para a vaga. Sabia, porém, que teria de estudar para obter aprovação. Foi o que fez. Ou tentou fazer. Juca Abelardo não entendia, enquanto lia livros e mais livros, por qual razão teria de saber sobre aquelas chatices. Com o passar dos dias, mal abria os tais livros, até que chegou a véspera da prova. Bom, o concurso é amanhã, vai ser bem difícil e bem concorrido, então é melhor começar a estudar pra valer. Com esse pensamento, lá foi Juca Abelardo de encontro aos livros. Mas já era noite, uma brisa agradável entrava pela janela, e ele preferiu sair e encontrar seus amigos na rua para jogar conversa fora. Afinal, pensava, por que me preocupar com o amanhã, se o amanhã acaba depois de amanhã?


Na hora da prova, com questões objetivas, Juca Abelardo não entendia nem ao menos o enunciado das questões, que eram demasiado longas. Então, ele tentou se lembrar o que seus professores diziam para fazer em situações assim, porque talvez uma luz surgisse no fim do túnel. Mas a única coisa que lhe veio à cabeça eram seus colegas, que costumavam dizer "na dúvida, marca a D". Já que estava em dúvida em todas as questões, Juca Abelardo chutou todas na letra D. Ele foi o primeiro a terminar a prova, e em muito pouco tempo, o que causou um enorme mal-estar a todos os concorrentes, que se sentiram extremamente inferiores.


Dias depois, quando o resultado saiu, Juca Abelardo teve uma boa surpresa: todas as respostas eram a letra D. Portanto, ele tirou o primeiro lugar.


Começando em seu novo emprego, Juca Abelardo foi recebido por seu superior hierárquico, Bernardo Martins, que lhe explicou os pormenores de seu trabalho:


Aqui, nada é verdadeiramente complicado, então não te preocupa, viu? Com o tempo tu vais perceber que serviço público não precisa de muito profissionalismo, mas cuida para não faltar demais.


-Entendi, senhor Martins. Não devo faltar.


Podes me chamar apenas de Bernardo, e me perdoa por ter te feito entender mal. Tu podes faltar, mas não muito, muito, porque, embora tu tenhas estabilidade, quinze faltas seguidas sem justificativa te exoneram do serviço público.


-Tá bom, vou me lembrar disso, Bernardo.


Juca Abelardo seguia à risca a recomendação de Bernardo, porque sempre que estava prestes a completar quinze faltas consecutivas ele dava as caras no escritório. Assim, tinha muito serviço acumulado, em função de só trabalhar dois dias por mês.


Sempre que chegava no trabalho, Juca Abelardo era tratado com enorme prestígio. A primeira coisa que fazia era perguntar ao porteiro, que ele conhecia apenas como Encarregado para Assuntos de Recado, se havia um recado para ele. Sempre tinha. Mas assim que ele começava a lhe transmitir, Juca Abelardo o interrompia, dizendo não querer começar mal o seu dia.


-Sim, sim, mas depois tu me diz. Eu estou quase de mau humor e não quero resolver coisa nenhuma agora.


O porteiro, invariavelmente, ficava furioso consigo mesmo, pensando em como quase aborreceu uma pessoa tão importante.


Certa vez, estavam no escritório, além de Juca Abelardo, funcionários de demais funções daquela repartição, quando Bernardo entrou no recinto e pediu a atenção de todos:


Como sabem, meus queridos, começou ele, o seu Ivan vai se aposentar. Ele é o subchefe daqui e não indicou ninguém para o cargo dele. Assim, quero saber quem aqui quer ocupar a vaga dele.


Antes que qualquer um pudesse se manifestar, Juca Abelardo tomou a palavra:


-Bom, minha gente, todos estão aqui a muito tempo, então não é justo que saiam de suas zonas de conforto, não é mesmo? Portanto, eu me disponho a ocupar o cargo, afinal, fui o último a chegar e, se alguém tem de mudar de função, que seja eu. Claro, meus amigos, eu vou ganhar mais, mas isso é nada em comparação às responsabilidades que terei na nova função, além de ser o novo chefe de cada um aqui, o que me obrigará a chegar antes de todo mundo.


Todos concordaram prontamente. Bernardo parabenizava Juca Abelardo por seu imenso senso de empatia, enquanto os demais funcionários diziam entre si coisas do tipo "ainda bem que ele quis assumir essa bronca, imagina só eu ter de mudar de cargo depois de tantos anos", e "isso sim é que é amigo, o seu Juca é de fé".


Assim, Juca Abelardo tornou-se o subchefe da repartição. Mas precisava assinar o documento de posse, que nada mais era do que uma burocracia. Procurou nos bolsos do paletó por uma caneta, mas não encontrou. Assim, decidiu recorrer às forças superiores. Fechou os olhos e disse: "-Eu quero uma caneta, eu quero uma caneta, eu quero uma caneta". Quando abriu os olhos, eis o milagre: uma caneta havia se materializado na sua frente, e estava suspensa pela mão de um de seus colegas.


Terminado o procedimento de assinatura, Juca Abelardo propôs a Bernardo que fossem almoçar, aproveitando, assim, para que o último explicasse as atribuições desse novo cargo. Embora ainda faltassem vinte minutos para a hora do almoço, Bernardo, não querendo ser desagradável, concordou imediatamente.


-Ah, e claro que eu vou deixar as honras do pagamento da conta para ti,


Bernardo, não quero que te preocupes comigo por gastar meu dinheiro.


Tu leste meus pensamentos, seu Juca, foi a resposta de Bernardo.


Antes de sair do prédio, ambos passaram pela secretária, que perguntou o que teria de dizer caso alguém telefonasse a procura de Juca Abelardo.


-Diz aí que eu saí, porque precisava resolver assuntos urgentes, que devem ser tratados sem mais demora, minha querida Encarregada para Assuntos de Telefonema.


Na saída do prédio, havia uma catraca, para controle de quem entrasse. Bernardo passou seu crachá para desbloqueá-la. Juca Abelardo, que vinha logo atrás, não estava de posse de seu crachá, coisa nada rara. Assim, ele decidiu pular a catraca para acessar a rua. Ao ver a cena, Bernardo sentiu-se muito mal por ter feito um procedimento tão demorado, enquanto Juca Abelardo livrava-se do obstáculo sem maiores dificuldades.


Após o almoço, Bernardo fez questão de tirar dinheiro de sua carteira, a fim de pagar a conta do restaurante. Já que suas notas eram de alto valor, Juca Abelardo trocou com algumas das suas mas, por descuido, deixou uma sobre a mesa. Logo quando saíram, Juca Abelardo deu-se conta do que ocorreu, e disse a Bernardo que já voltaria, enquanto dirigia-se ao interior do restaurante. Lá, encontrou logo ao entrar, um senhor, em pé, olhando para a porta onde estava Juca Abelardo, segurando a nota que este havia esquecido.


Meu senhor, disse o homem, acho que essa nota é tua, não é mesmo?


-Sim, eu vim buscar.


Pois é, eu a vi aqui na mesa, então pensei, imediatamente, em te devolver.


-Mas tu me deixaste sair daqui sem ela, demoraste demais para tomar uma providência, meu caro.


Sim, é mesmo. Te peço desculpa por isso, e te juro que não vou mais cometer esse tipo de erro. Eu sei que, não fosse minha demora, nada disso teria acontecido. Mas aqui está teu dinheiro.


-Tudo bem, dessa vez vou deixar passar, mas sê mais ágil da próxima vez.


Logo Juca Abelardo estava de volta à companhia de Bernardo. Ambos fumavam charutos, enquanto dirigiam-se de volta à repartição. De repente, o novo subchefe tropeçou em um buraco, quase indo ao chão. Bernardo imediatamente lhe pediu perdão, por não ter visto o tal buraco com a devida antecedência.


-Sim, vou te desculpar, não te preocupa. Mas o que me deixa irritado mesmo é a falta de competência dos Encarregados para Assuntos de Tapar Buraco. Olha só o tamanho desse aqui, eles nem se preocupam com isso.


Não demorou para que eles avistassem, mais à frente, fios de alta tensão soltos, próximos de um poste de madeira, bastante desgastado pelo tempo. Além disso, viram um semáforo mal configurado, que causava enorme engarrafamento em uma determinada avenida. Bernardo tomou a palavra.


Esse tal prefeito não resolve coisa alguma. Duvido que ele vença as próximas eleições.


-Concordo. Quem será que vai ganhar?


Por que tu não te candidatas, meu caro?


-Eu?


É, afinal, eu acredito que tu podes ser um bom gestor para essa cidade, de todos que eu conheço, tu és quem eu considero o melhor.


Juca Abelardo pensou por um breve instante e resolveu candidatar-se ao cargo de prefeito. Quando foi gravar sua campanha política, ele quis passar a impressão de alguém contra qualquer tipo de preconceito, então disse da seguinte forma:


-Eu sou contra o preconceito contra mulheres, contra os negros, contra os trabalhadores, contra os pobres...


Um de seus cabos eleitorais o avisou que a mensagem ficou, no mínimo, estranha, acreditando que, assim, todos pensariam que ele fosse contra várias classes de pessoas.


Na minha opinião, acredito que o melhor é que tu digas algo totalmente sincero, senhor, foi o que disse o cabo eleitoral.


-Tu tens razão, meu caro Encarregado para Assuntos de Opinião. Que tal eu dizer que não vou fazer nada, então?


Bom, talvez não tão sincero assim...


Pensando no que ia dizer na frente das câmeras, Juca Abelardo disse apenas:


-Conto com o teu voto para resolver os meus problemas!


O slogan de campanha caiu no gosto popular, em função de sua honestidade, e Juca Abelardo foi eleito com enorme vantagem para os demais concorrentes.


Em seu gabinete, já empossado prefeito de sua cidade, Juca Abelardo fumava um charuto, enquanto pensava em todas as suas conquistas. Tinha orgulho de ter resolvido sua vida de maneira satisfatória, e considerava isso justo, depois de tanto tempo de trabalho árduo. Era a justa recompensa de quem acredita que a vida é como deveria ser, e não como é.





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