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O defeito

Zangado mesmo Haroldo ficou depois que chegou na sala. O enorme espelho, que ia do chão ao teto, apresentava uma imensa rachadura, por conta da traquinagem de seus filhos. Paola e Bernardo foram chamados por ele:


-Viram só o que aconteceu? Eu disse que não era para jogar bola dentro de casa!


Mas não foi de propósito, pai, disse Bernardo.


E o espelho é que é ruim, não aguenta nem uma bolada, foi o que disse Paola.


-Tá, tá. Não me venham com história. Bom, eu vou ter de comprar um espelho novo, mas podem ter certeza que vou descontar da mesada de ambos, pouco a pouco por mês, até que eu tenha recuperado todo o prejuízo.


Os protestos vieram na mesma hora, mas Haroldo nem se importou, já saindo para o quarto. Lá, pegou o telefone e ligou para o vidraceiro.


-Alô? Seu Luigi? Oi, aqui é o Haroldo. Escuta, eu preciso de um espelho, para substituir o que tu colocaste na sala outro dia. É. Sim, sim, já quebrou. Como?

As crianças, ora, quem mais seria? Pois é. Quanto vai custar mesmo? Tá legal.


Assim que Vitória chegou, Haroldo foi mostrar o resultado da brincadeira de seus filhos. "Mas não te preocupa, meu bem. O seu Luigi vem aqui hoje colocar um espelho novo", disse ele à Vitória.


Não demorou para que Luigi, junto com dois ajudantes, chegasse na residência de Haroldo. Em pouco tempo eles retiraram o espelho que fora vítima de Paola e Bernardo e colocaram um novo em seu lugar.


Vitória, muito ligada à estética, não demorou para ir se olhar no novo espelho, conferir se estava bonita e com o cabelo arrumado. Mas, logo que chegou diante do tal espelho, chamou seu marido aos berros:


Haroldo! O espelho veio com defeito, meu reflexo não aparece nele!


Ele saiu da cozinha e foi até lá, ficando ao lado de sua esposa. Constatou, então, que sua imagem também não aparecia no espelho. Todas as coisas ao redor eram refletidas naquela chapa de vidro, inclusive o que estava atrás do casal. Haroldo, então, chegou à conclusão de que havia comprado um espelho com um sério problema: ele não mostrava a imagem das pessoas.


Logo os filhos do casal ficaram sabendo do ocorrido. Correram para a frente do tal espelho, e também não se viram nele. Paola até que tentou dar uns pulos e fazer caretas, enquanto Bernardo gritava com o espelho, mandando que ele funcionasse. Tudo em vão. O dito nem sequer mostrava um único fio de cabelo deles. Assim, Haroldo viu-se obrigado a ligar novamente para Luigi.


-Alô, seu Luigi? Olha, eu tenho um problema aqui.


Que foi, seu Haroldo?


-O espelho que tu colocaste aqui não funciona.


Como assim? O que aconteceu com ele?


-Ele não reflete nossas imagens.


Hum. Tá, mas tu já tentaste ficar um bom tempo parado diante dele? Pode ser que o problema seja a falta de hábito do espelho em refletir a tua família.


-Seu Luigi, eu estou bem na frente dele, e nem sinal da minha imagem no espelho.


Tá, mas deixa eu te perguntar: por acaso tu não és um vampiro?


-Ora, claro que não, seu Luigi! Eu sempre saio à luz do dia, e sempre tive meu reflexo em todos os espelhos pelos quais já passei. Só esse aqui que não.


Será que não é pilha fraca?


-Que história é essa de pilha? Desde quando espelho funciona com pilha?


Bom, era uma possibilidade. Tá, vamos fazer assim, ó: espera até amanhã e vê se ele funciona. Qualquer coisa me liga de novo.


O novo dia chegou. Vitória levantou-se e foi se arrumar. Na sequência, Haroldo fez o mesmo. Eles, juntamente com as crianças, foram para a sala tomar o café da manhã. Assim que chegaram lá, lembraram-se do bendito espelho que se negava a funcionar. Haroldo pediu que todos dessem as mãos e fossem juntos para a frente dele para ver se, assim, ele se resolvia a mostrar suas imagens. Nada. Continuava refletindo apenas os móveis da sala e a parede. Pessoas, nem pensar.


Então Bernardo teve a ideia de chegar de surpresa na frente do espelho, alegando que assim ele seria pego distraído e poderia começar a funcionar, devido ao susto. O garoto fez isso e não conseguiu fazê-lo trabalhar. Haroldo ligou novamente para Luigi. Este disse que viria até sua casa para ver o que podia fazer.


Luigi contemplava o espelho de cima a baixo, tentando descobrir qual era o defeito. Pediu uma colher de pau e, com ela, deu umas batidinhas em diversos pontos do vidro refletor. Ainda assim, continuava não vendo a si próprio nele.


Tu tens certeza que não é pilha fraca?, perguntou Luigi.


-Já te disse que não! Como pode ser isso, se ele nem tem espaço para colocar pilha.


Bom, então eu não sei. Olha, talvez seja defeito de fábrica. Quem sabe não configuraram a imagem das pessoas nele. Assim, o espelho não reflete ninguém.


-Tá, seu Luigi, mas como podemos resolver isso, então?


Tu tens a nota fiscal?


-Eu não, porque iria ter?


Justamente para o caso de defeitos como esse. Olha, sem a nota fiscal eu não posso fazer nada por ti.


-Mas o senhor sabe muito bem que fui eu quem comprou o espelho, seu Luigi.


Por que te preocupas tanto com a bendita nota fiscal?


Regras são regras, seu Haroldo. Se tu não tiveres nota fiscal, não posso reclamar lá na fábrica e te trazer um novo, lamento.


O vidraceiro saiu da casa e deixou Haroldo ainda mais irritado, porque agora ele possuía uma mercadoria defeituosa em sua casa e não podia livrar-se dela. Paola resolveu então partir para a ameaça, dizendo ao espelho que, se ele não funcionasse, ela lhe daria uma bolada e lhe faria em pedaços.


De nada adiantou. Ela ficou com a bola nas mãos, pronta para atirar, mas o espelho continuou sem refletir nada além dos objetos da casa. E Paola disse "olha só esse desaforado. A bola nas minhas mãos ele reflete, mas eu não. Pai, te livra dele logo, não gostei desse feioso".


Haroldo não teve outra opção senão guardar o tal espelho na garagem da casa e ligar para Luigi, solicitando um novo. O espelho substituto foi cuidadosamente analisado por Haroldo, que certificou-se de que aquele funcionava perfeitamente.


No mesmo dia, toda a família de Haroldo estava reunida na sala, assistindo televisão. Haroldo prestava atenção aos comerciais, acreditando que haveria um comunicado de recall para todos os proprietários de espelhos em sua região, a fim de averiguar possíveis defeitos de fabricação. Porém, nada foi dito a respeito, nem na televisão, nem em jornais.


Definitivamente, Haroldo teve apenas falta de sorte.





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