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Carta para o escritório


Pierre era um impávido carteiro que jamais deixou de entregar uma encomenda sequer. Conhecedor de todas as ruas por onde passava a cada novo dia de trabalho, colecionador de selos nas horas vagas, além de saber corresponder perfeitamente bem às expectativas, ele era o homem certo para toda e qualquer missão à base de entregas.


Eis que na fria manhã de uma quinta-feira Pierre foi informado pelo seu superior para que deixasse um envelope na Die Burg S/A, uma empresa que, se já existia antes, Pierre jamais havia notado, pois já passara várias vezes na rua indicada no endereço.


Mas sem tempo a perder, ele encaminhou-se até a tal rua onde deixaria o envelope na Die Burg S/A, comprovando sua eficiência. À medida em que passava pelas ruas a caminho daquela entrega aparentemente comum, Pierre deixava as demais correspondências nas caixinhas de correio em frente às casas. Então lá estava Pierre, na rua para entregar a encomenda na Die Burg S/A. Ele deveria entrar na empresa, procurar algum encarregado que assinaria o comprovante de entrega, visto que era essa uma exigência de praxe no serviço de correspondência sempre que algum documento de suma importância fosse enviado por esse meio. Pierre caminhou, sentindo a brisa dos ventos outonais, as folhas secas de um belo tom de dourado caíam no solo onde ele pisava, porém sua atenção estava na numeração das residências e prédios na tal rua, em busca do número indicado para deixar o envelope.


Então o carteiro Pierre parou em frente ao prédio correspondente ao número indicado. Era de uma fachada cinza, sem qualquer indicação. Não é à toa que Pierre jamais reparou que ali fosse a Die Burg S/A, haja vista fosse uma fachada bastante simples, com várias janelas, algumas com as luzes aparentemente apagadas, ao todo oito andares, contando o térreo.


Mas onde ficava a entrada?


Pierre não se lembrava de ter visto um prédio cuja fachada só tivesse janelas. A porta deveria ser ali, mas ali é que não estava mesmo. Será que a entrada é pelo outro lado?, pensou Pierre, atendendo a um raciocínio lógico, quase xingando a si próprio por não pensar nessa óbvia possibilidade assim que reparou estar do lado errado do prédio.


Ele foi caminhando pela rua lateral e entrou na próxima, que dava para os fundos, ou melhor, para a frente da Die Burg S/A. Colocaram o endereço errado para correspondência, então. Vou avisar assim que encontrar alguém responsável pela empresa. Este foi o pensamento que ocupou a mente de Pierre enquanto ele caminhava. Não era a primeira vez que erros assim eram cometidos.


Assim que chegou na rua oposta, Pierre notou de imediato o prédio cinzento, que destacava-se dos seus vizinhos coloridos. O prédio ao lado, rumo ao fim da rua, era rosa, enquanto o outro, por onde Pierre passaria em frente antes de chegar, era verde-claro. Ali estava o carteiro, de envelope na mão, pronto para entrar na Die Burg S/A, entregar a encomenda e seguir seu dia tranquilamente, como todos aqueles que pagam os impostos de seus respectivos países.


Mas onde estava a entrada? Pierre já se impacientava. Será que, distraído, deu a volta inteira pela quadra e voltara para o local de origem? Olhou ao redor. Não. Ele definitivamente estava em outra rua, e aquele certamente era o prédio em que ele deveria entrar. O envelope estava em mãos, a caneta para assinatura no bolso de sua camisa, a empresa à sua frente, enfim, tudo para entregar a correspondência. Tudo, menos a entrada.


-Ah, deve ser um edifício muito esquisito, esse, disse Pierre. Acho que a entrada é pelas laterais.


Porém os demais edifícios, o rosa e o verde-claro, estavam colados no edifício cinza da Die Burg S/A. Se havia alguma entrada pelas laterais, talvez estivesse na outra parte.


-Claro! É por isso que o endereço indicado aponta para a outra rua, disse Pierre, já fazendo o caminho de volta.


O homem das entregas parou em frente à outra fachada do edifício, observou o terreno e chegou à conclusão de que não havia entrada lateral coisa nenhuma. Só janelas. Em ambos os lados. Mas o que será que está acontecendo? Estará alguém tentando me pregar uma peça? Mas a verdade é que nada indicava tal possibilidade. Quem iria construir um edifício só para pregar uma peça em alguém? E o pior: um edifício sem entrada.


-Isso sim é que não!, disse Pierre quando esse pensamento lhe ocorreu. Tem entrada sim, porque eu vejo gente pelas janelas!


De fato, Pierre podia observar perfeitamente um homem de camisa branca e gravata escura, aparentemente debruçado sobre alguma mesa, com uma das mãos, enquanto a outra segurava um telefone. O carteiro Pierre pôs-se a observar o tal homem, que gesticulava um pouco, dava alguns passos, depois desaparecia, para então tornar a ficar visível pelo enquadramento da janela. Pensou então em lhe chamar e perguntar onde ficava a entrada. Porém toda vez em que o homem ficava visível na janela, aparentemente do terceiro andar, Pierre não conseguia chamar sua atenção. De repente, o homem sumiu e não voltou mais. Pierre atravessou a rua para poder contemplar toda a fachada, e consequentemente todas as janelas, a fim de avistar alguém que pudesse lhe ajudar na, agora, dificílima missão de entregar uma correspondência, coisa que ele havia feito míseras duas ou três mil vezes desde que se tornara carteiro.


Pierre via algumas pessoas, ou melhor, silhuetas, em determinadas janelas, mas todas estavam fechadas, e portanto seus gritos não foram ouvidos. Tampouco seus acenos e pulinhos no meio da calçada eram avistados por quem quer que fosse no prédio da Die Burg S/A.


Então, ele procurou outras pessoas para buscar informações. Bateu na porta da casa em frente, perguntando se sabiam algo do prédio em frente.


Qual prédio?, perguntou uma senhora que atendeu.


-Aquele cinza ali, disse Pierre apontando para o edifício exatamente em frente àquela casa.


Ah, sim, estou vendo. Que tem?


-Preciso entregar esse envelope lá.


Ora, é só ir até lá, disse a mulher, tentando dar um tom cordial à sua voz.


-Mas não encontro a entrada, minha senhora!


Ah, então deve ser do outro lado.


-Mas eu já fui lá e não tem nada.


Procuraste direito?


-Ora essa, é claro que sim!


Então não sei.


-Escuta, a senhora nunca percebeu que esse prédio não tem porta de entrada? Sabe, eu nunca tinha notado nesse prédio aí.


-Mas podes me dizer se a Die Burg S/A funciona ali mesmo?


Olha, seu moço, eu nem conheço esse nome.


-Então deve ser uma empresa muito discreta mesmo. Bom, te agradeço de qualquer forma.


Pierre deteve-se em frente ao prédio, contemplou-o demoradamente, de cima a baixo, intrigado com a tal construção onde não se podia entrar. Conforme algumas pessoas passavam pela rua, ele as abordava, questionando se sabiam algo sobre o edifício cinza que ali estava. Invariavelmente, as respostas eram do tipo "nunca reparei nesse prédio aí". Sem outras alternativas, o carteiro começou a pensar se as pessoas que ele via ali dentro não haviam construído o prédio e esqueceram-se de fazer a porta para poderem sair. Não, não. Eles já teriam gritado por socorro pelas janelas, pensava Pierre. Mas depois pensava outra vez: Ou, talvez, tenham mesmo se esquecido e não tiveram coragem de admitir que cometeram um erro tão bisonho como esse. Ou seja, era possível que os homens e mulheres que estavam lá dentro originalmente fossem os pedreiros, engenheiros e demais funcionários que levantaram o edifício.


Já ficando impaciente com a situação, ocorreu a Pierre abrir ele próprio a correspondência destinada para a Die Burg S/A, pois talvez ali houvesse alguma pista sobre a empresa ou seu esquisito prédio. Mas como ele poderia fazer uma coisa dessas? O envelope deveria ser entregue em mãos para os responsáveis da Die Burg S/A, portanto violar o envelope estava fora de questão.


Em dado momento, vencido pela perplexidade, Pierre sentou-se no meio-fio, na calçada oposta à do prédio, com o bendito envelope entre seus dedos já trêmulos pelo nervosismo, contemplando o prédio cinza, este sim uma construção impenetrável.


O Sol já ameaçava se esconder atrás das montanhas distantes quando Pierre decidiu que continuaria seu trabalho, por sinal já bastante atrasado, e no dia seguinte reservaria um tempo só para fazer a entrega na Die Burg S/A.


O novo dia seguiu quase em sua plena normalidade, à exceção das constantes perguntas que Pierre fazia a todas as pessoas da cidade inteira se estas conheciam uma empresa chamada Die Burg S/A, mas a resposta foi invariavelmente negativa. Quando ele foi fazer uma entrega em uma empresa de engenharia, não se conteve e perguntou:


-Os prédios modernos vêm sendo construídos sem a entrada?


Como assim?, indagou o engenheiro.


-Pois tu não vais acreditar, eu vi um prédio que não tem entrada, só janelas.


Que coisa esquisita. Jamais reparei em prédios assim. Deve ser novidade mesmo.


-Então quer dizer que existem mesmo prédios sem entrada?


Se o senhor disse que viu um assim, quem sou eu para duvidar?


-O senhor é engenheiro.


Sim, mas não é por isso que vou saber de absolutamente tudo sobre prédios.


-Certo, certo, obrigado assim mesmo.


Depois de deixar a empresa de engenharia, Pierre ia pensando se o engenheiro não havia concordado só por o considerar um maluco. Seja como for, o prédio encontrava-se lá, como prova da sanidade mental de Pierre.


Quando nada mais restava na bolsa de correspondências de Pierre, ele dirigiu-se para a rua onde estivera na véspera, com um único envelope, destinado à Die Burg S/A. E, como não poderia deixar de ser, lá estava o edifício, cinza como antes, com as mesmas janelas, a mesma movimentação e a mesma ausência de entrada.


-Ei! Tem alguém me ouvindo!?, gritava Pierre a plenos pulmões, na tentativa de ser ouvido por alguém nas janelas. Nada. Nova tentativa:


-Tenho uma entrega nesse endereço! Alguém aí pode me atender?


Aparentemente, os funcionários da Die Burg S/A estavam tão compenetrados em suas atividades que sequer ouviam o desolado carteiro em sua Cruzada pelo cumprimento de seu dever. Sem mais o que fazer, Pierre foi embora.


No dia seguinte, dobrou a esquina pensando em atirar pedras nas janelas, a fim de ser atendido, mas mudou de ideia ao imaginar o prejuízo que teria sendo obrigado a pagar pelos estragos. Como no dia anterior, gritou o mais que pôde, mas ninguém lá dentro notou sua presença.


Como a esperança é a última que morre, Pierre estava lá no dia seguinte. Dessa vez, teve uma grata surpresa: uma das janelas, do segundo andar, calculava, estava aberta.


-Tem alguém me ouvindo aí!?


Não demorou para que uma simpática moça viesse à janela.


Posso te ajudar?, disse ela.


-Sim, pode sim. Eu tenho de fazer uma entrega para a Die Burg S/A.


Não é nesse endereço, disse a moça.


-Mas como? Aqui não é a Rosenbergstraße, número quatrocentos e doze?


Sim, isso mesmo, mas essa empresa não fica mais aqui. Agora ela está situada na Lindenbergstraße, número trinta e seis.


-Ah, tudo bem então, disse Pierre.


Ele seguiu até a Lindenbergstraße, deteve-se em frente ao número trinta e seis, viu uma placa indicando o nome da Die Burg S/A, entrou no prédio, pegou a assinatura do gerente, entregou o envelope e seguiu para a fazer a próxima entrega.






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